DICIONARIO JUNGUIANO
ALMA
Nas “Definitions”, publicada relativamente cedo entre os escritos de Jung (CW 6, 1921), há no verbete psique: “ver ‘alma’ ”. Jung se refere com mais freqüência à PSIQUE que à alma, ao discutir a totalidade dos processos psíquicos e da ANÁLISE. Mas é também possível insistir em certos usos específicos do termo “alma”:
(1) Usada por Jung (e por psicólogos junguianos) em lugar de psique, sobretudo quando se deseja sublinhar um movimento na sua profundidade, enfatizando a pluralidade, a variedade e a impenetrabilidade da psique em contraste com qualquer padrão, ordem ou significado ali discerníveis (cf. SELF). Com referência à pluralidade, Jung descreve as culturas em que se fala de “almas múltiplas”.
(2) Usada em lugar de ESPÍRITO quando se deseja referir o aspecto imaterial dos humanos – seu âmago, coração, centro (Samuels, 1985ª, pp. 244-5).
(3) Usada por alguns autores pós-junguianos para indicar uma perspectiva particular sobre o mundo, que se concentra em imagens profundas e no modo como a psique converte os eventos em experiências – “fazer alma” (Hillman, 1975).
ANÁLISE
A análise junguiana é um relacionamento dialético de longo prazo entre duas pessoas, ANALISTA E PACIENTE, e é dirigida para uma investigação do INCONSCIENTE do paciente, seus conteúdos e processos, a fim de aliviar uma condição psíquica sentida como não mais tolerável por causa das interferências que tem na vida consciente. O distúrbio pode ser neurótico no caráter (ver NEUROSE) ou uma manifestação de uma tendência psicótica mais intensa (ver PSICOSE). Embora tenha como ponto de partida o distúrbio, a prática da análise junguiana pode envolver experiências de individuação, quer com crianças e jovens, quer com pessoas na segunda metade da vida (ver ESTÁGIOS DA VIDA), mas essas experiências podem ou não ser conectadas, de modo a se poder dizer que um processo de INDIVIDUAÇÃO ocorre. Fazendo distinção entre análise e PSICOTERAPIA, analistas clínicos fizeram uma diferenciação entre as duas com base em intensidade, profundidade, freqüência de sessões e duração do trabalho, conjugados a uma avaliação realista das capacidades e limitações psicológicas do paciente.
Entre suas próprias definições (CW 6) Jung não incluiu a de análise, porém seu modelo metodológico original era a PSICANÁLISE. Após a ruptura com Freud, em 1913, Jung introduziu mudanças significativas nessa estrutura, mudanças compatíveis com sua própria experiência e formulação de conceitos. Seu ponto de vista pessoal dava colorido próprio a seu uso da técnica (por exemplo, sua preferência pela conversação conduzida tête-à-tête). Quando, mais tarde, os analistas junguianos se desviaram de suas práticas, tiveram de reformular idéias para apoiar seus próprios procedimentos (ver PSICOLOGIA ANALÍTICA).
As divergências de Jung com as postulações da psicanálise podem ser resumidas como se segue: (1) ele via muito do que acontece como um jogo de OPOSTOS e a partir dessa perspectiva derivava sua reflexão sobre a ENERGIA PSÍQUICA. Isso levava à sua insistência em um método analítico que ele chamava de “sintético”, uma vez que, eventualmente, resultava em uma síntese de princípios psicológicos em oposição (ver MÉTODOS REDUTIVO E SINTÉTICO); (2) embora não tivesse a pretensão de duvidar de que os instintos motivavam a vida psíquica, via-os continuamente “colidindo” com uma outra coisa que, à falta de um termo melhor, chamou de “espírito”. Identificava o ESPÍRITO como uma força arquetípica encontrada na pessoa sob a forma de imagens. Em conseqüência, a análise junguiana envolve trabalho com imagens arquetípicas (ver ARQUÉTIPO); (3) por opção própria, Jung preferia “observar um homem à luz daquilo que nele é saudável e bom, mais que à luz de seus defeitos” (CW 4, parágs. 773-4). Isso implica em sua adoção de um PONTO DE VISTA PROSPECTIVO ou TELEOLÓGICO na análise; (4) com relação à RELIGIÃO, sua atitude era positiva. Enquanto isso necessariamente não leva a uma ênfase sobre a própria religião, dá-se atenção às exigências do SELF, como também às exigências do EGO e fica implícito admitir que a experiência da análise está intimamente ligada à descoberta do SIGNIFICADO.
Além dessas diferenças mostradas pelo próprio Jung, Henderson (1982) observou a confiança de Jung na MITOLOGIA e em padrões universais relacionados com o mito, sua apresentação de um procedimento dialético em contraste com o modelo da “análise de sistema fechado” de Freud, uma hipótese sobre a REGRESSÃO que não é posta apenas a serviço do ego, mas pode também considerar-se a serviço do self, um método antes de tudo simbólico que coloca a pessoa em conexão com fontes arquetípicas de imagens por meio da AMPLIFICAÇÃO e uma análise de fenômenos de transferência/contratransferência por meio do método simbólico.
Escrevendo em 1929, Jung identificou quatro aspectos da análise considerados por ele “estágios” do tratamento analítico. Lambert (1981) e M. Stein (1982) apontaram que os quatro estágios não são necessariamente seqüenciais, porém caracterizam vários aspectos do trabalho analítico.
O primeiro dos quatro estágios é a catarse ou purificação (ver AB-REAÇÃO). Jung falava disso como a aplicação científica de uma antiga prática, ou seja, a confissão, e a ligava a ritos e práticas de INICIAÇÃO. Aliviar o self de alguém abrindo-se para um outro ser humano provoca ruptura de defesas pessoais e do isolamento neurótico; daí a preparação do caminho para um novo estágio de crescimento e um diferente status.
Jung identificava o segundo estágio como a elucidação. Aqui são revelados elos com processos inconscientes e uma conscientização disso efetua uma acentuada mudança de atitude, envolvendo o indivíduo no SACRIFÍCIO da supremacia de seu intelecto consciente.
O terceiro estágio é a educação ou uma “instigação” do paciente em resposta a novas possibilidades, semelhante à idéia psicanalítica da elaboração – o processo muitas vezes prolongado da INTEGRAÇÃO.
O quarto estágio é o da TRANSFORMAÇÃO. Não se deveria porém cogitar da transformação como ligada somente ao paciente. O analista também deve mudar ou transformar suas atitudes, a fim de ser capaz de uma interação com seu paciente em mutação.
ANIMA E ANIMUS
A figura interior de mulher contida num homem e a figura de homem atuando na psique de uma mulher. Embora desiguais nos modos como se manifestam, anima e animus têm certas características em comum. Ambos são IMAGENS psíquicas. Cada qual é uma configuração que emana de uma estrutura arquetípica básica (ver ARQUÉTIPO). Como as formas fundamentais que subjazem aos aspectos “femininos” do homem e aos aspectos “masculinos” da mulher, são considerados como OPOSTOS. Como componentes psíquicos, são subliminares à consciência e funcionam a partir de dentro da psique inconsciente; daí, serem benéficos à consciência, mas também podem pô-la em risco através da POSSESSÃO (ver adiante). Operam influindo sobre o princípio psíquico dominante de um homem ou uma mulher e não simplesmente, como muitas vezes se sugere, como a contraparte psicológica contrassexual de masculinidade ou feminilidade. Atuam como PSICOPOMPO, os guias da alma e podem se tornar elos necessários como possibilidades criativas e instrumentos da INDIVIDUAÇÃO.
Em virtude de suas conexões arquetípicas, anima e animus foram representados em muitas formas e figuras COLETIVAS: como Afrodite, Atena, Helena de Tróia, Maria, Sabedoria e Beatriz; ou como Hermes, Apolo, Hércules, Alexandre, o Grande, e Romeu. Na projeção, atraem atenção e fervor emocional como figuras públicas, mas também como amigos, amantes, viúvas e maridos, banais e comuns. Deparamos com eles como consortes em nossos sonhos. Como componentes personificados da PSIQUE, nos ligam e nos envolvem com a vida (ver PERSONIFICAÇÃO). Uma compreensão e integração completas de cada uma dessas imagens exigem uma parceria com o sexo oposto. O desemaranhamento e o exame de aspectos dessa SIZÍGIA entre ANALISTA E PACIENTE são uma tarefa primária na ANÁLISE.
Entre suas definições (CW 6), Jung resumiu anima / animus como “imagens da alma”. Posteriormente elucidou esta afirmação chamando a cada uma delas de não-eu. Ser não-eu para um homem corresponde, com muita probabilidade, a algo feminino e, porque é não-eu, está fora de si próprio, pertencendo à sua alma ou ao seu espírito. A anima (ou animus, conforme o caso) é um fator que acontece a um indivíduo, um elemento apriorístico de disposições, reações, impulsos no homem; de compromissos, crenças, inspirações em uma mulher – e, para ambos, algo que induz o indivíduo a tomar conhecimento do que é espontâneo e significativo na vida psíquica. Por trás do animus, alegava Jung, jaz “o arquétipo de significado; exatamente da mesma forma que anima é o arquétipo da própria vida” (CW 91, parág. 66).
Estes conceitos foram delineados empiricamente e possibilitaram a Jung dar coerência a uma vasta gama de fenômenos psíquicos observáveis e diferenciá-los posteriormente quando trabalhava com analisandos. Na análise, a separação da anima ou animus está intimamente ligada ao trabalho inicial de tornar a SOMBRA consciente. As imagens originais são ilustrativas de COMPLEXOS psíquicos semiconscientes, PERSONIFICAÇÕES autônomas e amplamente independentes até adquirem solidez, influência e, finalmente, CONSCIÊNCIA, mediante o confronto com o mundo cotidiano. Jung advertia contra conceituar apenas (assim perdendo contato com anima /animus como forças vivas) ou agir de um modo que negue a REALIDADE PSÍQUICA de tais figuras interiores.
A possessão pela anima ou pelo animus transforma a personalidade de modo a dar proeminência àqueles traços que são considerados psicologicamente característicos do sexo oposto. Em um ou outro caso, uma pessoa perde a individualidade, antes de tudo, e, conseqüentemente, tanto o encanto como os valores. Em um homem, ele fica dominado pela anima e pelo princípio de EROS com conotações de inquietação, promiscuidade, mau humor, sentimentalidade – o que quer se possa definir como uma emocionalidade irreprimida. Uma mulher sujeita à autoridade do animus e do LOGOS é controladora, obstinada, cruel, dominadora. Ambos tornam-se unilaterais. Ele é seduzido por pessoas inferiores e forma ligações pouco significativas; ela, sendo absorvida por um pensamento de segunda classe, marcha à frente sob a égide de convicções que não levam em conta os relacionamentos.
Falando em termos não-profissionais, Jung dizia que os homens aceitavam a anima prontamente quando ela aparecia em um romance ou como uma estrela de cinema. Porém, era diferente quando se tratava de observar o papel que ela desempenhava em suas próprias vidas.
Caso houvesse feito uma alegação correspondente sobre o animus, poderia ter dito que até recentemente as mulheres estiveram por demasiado prontas e propensas a permitir que os homens lutassem por elas, esperando secretamente pela libertação por um cavaleiro em um corcel branco. Mas agora que passaram a aceitar seus lugares não como homens mas lado a lado com homens, o assunto é diferente. Querendo gozar de um status de igualdade, mas ao mesmo tempo desejando permanecer fiéis à sua identidade como mulheres, tiveram de harmonizar-se com quem realmente é o padrão em suas vidas e revelar suas fontes íntimas de autoridade.
Hillman (1972, 1975) investigou e elucidou a psicologia da anima. Insiste em que é ela quem personifica a inconsciência de toda nossa cultura ocidental e pode ser a imagem pela qual seremos liberados imaginativamente.
Não existe um trabalho ou uma obra de correspondente profundidade sobre o animus. Além do mais, devido às infelizes conotações da possessão pelo animus que possam haver caracterizado mulheres pioneiras em uma sociedade dominada pelo macho, deu-se muito pouca atenção às intervenções psíquicas do chamado animus positivo ou natural, em confronto como o animus negativo e adquirido (Ulanov, 1981).
ARQUÉTIPO
A parte herdada da PSIQUE; padrões de estruturação do desempenho psicológico ligados ao INSTINTO; uma entidade hipotética irrepresentável em si mesma e evidente somente através de suas manifestações.
A teoria dos arquétipos, de Jung, desenvolveu-se em três estágios. Em 1912 ele escreveu sobre imagens primordiais que reconhecia na vida inconsciente de seus pacientes, como também em sua própria auto-análise. Essas imagens eram semelhantes a motivos repetidos em toda parte e por toda a história, porém seus aspectos principais eram sua numinosidade, inconsciência e autonomia (ver NUMINOSO). Na concepção de Jung, o INCONSCIENTE coletivo promove tais imagens. Por volta de 1917, escrevia sobre dominantes não-pessoais ou pontos nodais na psique, que atraem energia e influenciam o funcionamento de uma pessoa. Foi em 1919 que pela primeira vez fez uso do termo arquétipo, a fim de evitar qualquer sugestão de que era o conteúdo e não o esboço ou padrão inconsciente e irrepresentável que era fundamental. São feitas referências ao arquétipo per se para que fosse claramente distinguido de uma IMAGEM arquetípica compreensível (ou compreendida) pelo homem.
O arquétipo é um conceito psicossomático, unindo corpo e psique, instinto e imagem. Para Jung isso era importante, pois ele não considerava a psicologia e imagens como correlatos ou reflexos de impulsos biológicos. Sua asserção de que as imagens evocam o objetivo dos instintos implica que elas merecem um lugar de igual importância.
Os arquétipos são percebidos em comportamentos externos, especialmente aqueles que se aglomeram em torno de experiências básicas e universais da vida, tais como nascimento, casamento, maternidade, morte e separação. Também se aderem à estrutura da própria psique humana e são observáveis na relação com a vida interior ou psíquica, revelando-se por meio de figuras tais como ANIMA, SOMBRA, PERSONA, e outras mais. Teoricamente, poderia existir qualquer número de arquétipos.
Padrões arquetípicos esperam o momento de se realizarem na personalidade, são capazes de uma variação infinita, são dependentes da expressão individual e exercem uma fascinação reforçada pela expectativa tradicional ou cultural; e, assim, portam uma forte carga de energia, potencialmente arrasadora a que é difícil de se resistir (a capacidade de fazê-lo é dependente do estágio de desenvolvimento e do estado de CONSCIÊNCIA). Os arquétipos suscitam o AFETO, cegam o indivíduo para a realidade e tomam posse da VONTADE. Viver arquetipicamente é viver sem limitações (INFLAÇÃO). Entretanto, dar expressão arquetípica a alguma coisa pode ser interagir conscientemente com a imagem COLETIVA, histórica, de forma tal a permitir oportunidade para o jogo de polaridades intrínsecas: passado e presente, pessoal e coletivo, típico e único (ver OPOSTOS).
Todas a imagens psíquicas compartilham, até certo ponto, do arquetípico. Esta é a razão por que os sonhos e muitos outros fenômenos psíquicos possuem numinosidade. Comportamentos arquetípicos têm a maior evidência em tempos de crise, quando o EGO está vulnerável ao máximo. Qualidades arquetípicas são encontradas em SÍMBOLOS e isso, em parte, responde por sua fascinação, utilidade e recorrência. DEUSES são METÁFORAS de comportamentos arquetípicos e MITOS são ENCENAÇÕES arquetípicas. Os arquétipos não podem completamente ser integrados nem esgotados em forma humana. A análise da vida implica uma conscientização crescente das dimensões arquetípicas da vida de uma pessoa.
O conceito do arquétipo, de Jung, está na tradição das Idéias Platônicas, presentes nas mentes dos deuses, e que servem como modelos para todas as entidades no reino humano. As categorias apriorísticas da percepção, de Kant, e os protótipos de Schopenhauer também são conceitos precursores.
Em 1934, Jung escreveu:
Os princípios básicos, os archetypoi, do inconsciente são indescritíveis em virtude de sua riqueza de referência, muito embora recognoscíveis em si mesmos. O intelecto discriminador naturalmente prossegue tentando estabelecer-lhes significados únicos e, assim, perde o ponto essencial; pois aquilo que, antes de tudo, podemos estabelecer como compatível com sua natureza é seu significado múltiplo, sua quase ilimitada riqueza de referência, que torna impossível qualquer formulação unilateral (CW 9i, parág. 80).
Ellenberger (1970) identificou o arquétipo como uma das três principais diferenças conceituais entre Jung e Freud na definição do conteúdo e do comportamento do inconsciente. Seguindo Jung, Neumann (1954) via os arquétipos recorrentes em cada geração, mas também adquirindo uma história de formas baseada em uma ampliação da consciência humana. Hillman, fundador da escola da Psicologia Arquetípica, cita o conceito de arquétipo como o mais fundamental na obra de Jung, referindo-se a essas mais profundas premissas do funcionamento psíquico como delineadoras do modo pelo qual percebemos e nos relacionamos com o mundo (1975). Williams argumentou que, se a estrutura arquetípica permanecer vazia sem uma experiência pessoal para preenchê-la, a distinção entre dimensões pessoais e coletivas da experiência ou categorias do inconsciente pode ser algo acadêmica (1963a).
Noções de estrutura psicológica inata existem na psicanálise hodierna, marcadamente na escola kleiniana; Isaacs (fantasia inconsciente), Bion (preconcepção) e Money-Kyrle (cf. Money-Kyrle, 1978). A teoria dos arquétipos, de Jung, também pode ser comparada ao pensamento estruturalista (Samuels, 1983 a).
Com o uso crescente do termo, encontramos freqüentes referências a fenômenos tais como “um necessário deslocamento do arquétipo paterno” ou “o arquétipo em deslocamento da feminilidade”. A palavra foi incluída no Dictionary of Modern Thought de Fontana, em 1977. O biólogo Sheldrake encontra correspondência relevante entre a formulação de Jung e sua teoria dos “campos morfogenéticos” (1981)